A alteração do regime de bens com a formalização da união estável

Já comentamos, aqui no Próxima Geração, que a união estável atualmente é equiparável ao casamento para fins sucessórios, conforme já decidido pelo Supremo Tribunal Federal.

A peculiaridade da união estável, contudo, é que, ao contrário do casamento, a legislação não exige formalidade alguma para sua constituição, o que torna praticamente impossível a fixação de uma data de início do vínculo entre as partes envolvidas.

Ainda que venha a ser formalizada em cartório, tal documento, em praticamente todos os casos, apenas atesta uma relação que já existia entre os companheiros.

Vale lembrar que a regra, na união estável, assim como no casamento, é o regime da comunhão parcial de bens, onde os bens adquiridos na constância do relacionamento são dos dois, pois o esforço comum para sua aquisição é presumido.

O grande problema é quando a relação perdura por alguns (ou muitos) anos, cada um adquire bens em seu nome e, em determinado momento, os companheiros resolvem formalizá-la em cartório, optando por regime de bens diverso do da comunhão parcial, como é o caso da separação total, por exemplo.

Nessa situação, fica a dúvida: a relação sempre esteve submetida ao regime de separação total, ou o regime aplicável anteriormente à formalização seria o da comunhão parcial?

O Superior Tribunal de Justiça se deparou com essa situação e, no mês passado, decidiu pela impossibilidade de os efeitos do regime de bens escolhido pelos companheiros retroagirem (ou seja, produzirem efeito no passado).

O caso apreciado pelo STJ tem relação direta com o planejamento sucessório, pois quem pleiteou a impossibilidade de o regime de bens retroagir foram as filhas da companheira, que faleceu três meses após a alteração do regime de bens da união estável.

Transcreve-se, a seguir, trecho da ementa da decisão do Recurso Especial nº 1.845.416:

FORMALIZAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL. DESNECESSIDADE. CARACTERIZAÇÃO QUE INDEPENDE DE FORMA. EFEITOS PATRIMONIAIS DA UNIÃO ESTÁVEL. REGIME DE BENS. APLICABILIDADE DA REGRA DO ART. 1.725 DO CC/2002 E DO REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL, NA AUSÊNCIA DE DISPOSIÇÃO EXPRESSA E ESCRITA DAS PARTES. SUBMISSÃO AO REGIME DE BENS IMPOSITIVAMENTE ESTABELECIDO PELO LEGISLADOR. AUSÊNCIA DE LACUNA NORMATIVA QUE SUSTENTE A TESE DE AUSÊNCIA DE REGIME DE BENS. CELEBRAÇÃO DE ESCRITURA PÚBLICA DE INCOMUNICABILIDADE PATRIMONIAL COM EFICÁCIA RETROATIVA. IMPOSSIBILIDADE, POIS CONFIGURADA A ALTERAÇÃO DE REGIME COM EFICÁCIA EX-TUNC, AINDA QUE SOB O RÓTULO DE MERA DECLARAÇÃO DE FATO PRÉ-EXISTENTE.

(…)

7- Em suma, às uniões estáveis não contratualizadas ou contratualizadas sem dispor sobre o regime de bens, aplica-se o regime legal da comunhão parcial de bens do art. 1.725 do CC/2002, não se admitindo que uma escritura pública de reconhecimento de união estável e declaração de incomunicabilidade de patrimônio seja considerada mera declaração de fato pré-existente, a saber, que a incomunicabilidade era algo existente desde o princípio da união estável, porque se trata, em verdade, de inadmissível alteração de regime de bens com eficácia ex tunc.

8- Na hipótese, a união estável mantida entre as partes entre os anos de 1980 e 2015 sempre esteve submetida ao regime normativamente instituído durante sua vigência, seja sob a perspectiva da partilha igualitária mediante comprovação do esforço comum (Súmula 380/STF), seja sob a perspectiva da partilha igualitária com presunção legal de esforço comum (art. 5º, caput, da Lei nº 9.278/96), seja ainda sob a perspectiva de um verdadeiro regime de comunhão parcial de bens semelhante ao adotado no casamento (art. 1.725 do CC/2002).”

É interessante destacar que a decisão não foi unânime, como destacado na matéria do site Conjur*:

“Ficou vencido o ministro Marco Aurélio Bellizze, que votou por dar efeitos retroativos à declaração de comunhão total de bens feita três meses antes da morte da mulher. Para ele, o que o casal fez em 2015 foi simplesmente declarar uma situação que já existia, o que não se confunde com a modificação de um regime que nunca havia sido admitido.

Destacou que a lei não exige que a formalização de um regime de bens que seja escolhido pelo casal no início da união estável seja feita necessariamente no momento em que essa escolha é feita. É diferente do que ocorre com o pacto antenupcial, por exemplo.

Assim, considera absolutamente possível cogitar que haja, entre os companheiros, desde o início da relação, um acordo verbal de não comunicação de seus bens, sendo cada um responsável pelo seu patrimônio e por suas despesas.

‘Na prática, na grande maioria desses relacionamentos, a formalização desse regime de bens faticamente já vigente entre os companheiros não se dá imediatamente ao início da convivência. Afinal, as relações convivenciais se desenvolvem, no mundo dos fatos, longe dos rigores formais, o que não pode ser utilizado como justificativa para cercear a liberdade e a autonomia dos companheiros para dispor sobre seus bens já nesse momento inicial’, explicou.

Se a lei exige que o acordo verbal seja formalizado por meio de contrato escrito e não prevê prazos, então isso pode ocorrer a qualquer momento da união estável.

‘Na hipótese retratada nos presentes autos, o que se tem é uma declaração, em escritura pública, emanada por ambos os companheiros, cuja manifestação de vontade apresentou-se livre e espontânea, de que, desde sempre (desde o início da união estável), o patrimônio de cada um deles foi haurido sem a participação ou esforço do outro, em regime de separação total de bens, sem, portanto, comunicação entre eles’, disse.”

Na nossa avaliação, deveria ter prevalecido o entendimento do voto vencido, já que, de fato, se as duas partes, completamente capazes e lúcidas, expressamente optaram por declarar que o relacionamento, ainda que informal, sempre havia sido pautado pelo regime da separação de bens, a anulação deste ato pelo Poder Judiciário interfere diretamente na autonomia dos envolvidos, tratando-os como incapazes.

É evidente que, havendo prova de vício de consentimento de uma das partes (como pressão psicológica ou ameaças), esse e qualquer outro ato jurídico pode e deve ser considerado nulo.

De qualquer forma, o precedente é importante para escancarar a necessidade de formalização das relações amorosas, evidenciando o cenário de enorme insegurança jurídica ao qual está sujeito quem vive em união estável (e às vezes nem sabe disso, achando se tratar de mero namoro), diante da ausência de regras claras em relação ao regime de bens.

A consequência desse cenário de incertezas, para fins sucessórios, pode ser uma longa disputa judicial entre os herdeiros do companheiro falecido e o sobrevivente.


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Sobre o Autor

Felipe Zaleski
Felipe Zaleski

Sócio da Raupp Advocacia Empresarial, advoga desde 2013 para pessoas físicas e jurídicas. Especializado em direito tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBET) de Santa Catarina, o autor alia o conhecimento teórico e prático adquirido ao longo dos anos nas diversas áreas do Direito necessárias à realização de um bom planejamento patrimonial, como societário, contratual, imobiliário, família e sucessões.

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