Comoriência
Na nona edição da nossa Newsletter quinzenal, enviada na última segunda-feira (se você não é assinante, clique aqui para se inscrever – é de graça!), mencionamos, em determinado momento, o princípio da saisine.
Esse princípio estabelece, em resumo, que a herança se transmite imediatamente, no momento da morte, aos herdeiros.
Sabemos que, na prática, não é bem assim, pois é necessária a operacionalização dessa transferência patrimonial por meio do processo de inventário, seja judicial ou extrajudicial.
Entretanto, o princípio possui aplicabilidade em diversas situações, inclusive quando falamos de comoriência – objeto do post de hoje.
Comoriência é a expressão jurídica utilizada para a situação em que duas pessoas vêm a falecer simultaneamente, incluindo os casos em que isso ocorre de forma presumida, por não ser possível aferir com exatidão o horário da morte. Exemplos típicos desse fenômeno são casos envolvendo acidentes automobilísticos e aéreos.
O princípio da saisine é relevante nessas situações em que duas pessoas, que normalmente seriam herdeiras uma da outra, falecem ao mesmo tempo. Nesse caso, como a herança não pode ser destinada a alguém que já está morto, automaticamente os herdeiros de cada um serão exclusivamente contemplados com o patrimônio do falecido.
No caso de um acidente, em que duas pessoas são herdeiras uma da outra, sendo que um dos envolvidos é hospitalizado e vem a falecer horas depois do outro, que morreu na hora, o simples fato de não haver comoriência é suficiente para que os filhos de quem foi hospitalizado venham a herdar por representação, por exemplo.
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ao analisar caso envolvendo comoriência, já decidiu:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE INVENTÁRIO. ACIDENTE. COMORIÊNCIA. DECISÃO QUE CONSIDEROU VÁLIDO O PLANO APRESENTADO E DETERMINOU A PARTILHA DO BEM/VERBAS PARTICULARES DO CÔNJUGE FALECIDO, EXCLUSIVAMENTE AOS SEUS HERDEIROS. INSURGÊNCIA DOS PAIS DA ESPOSA FALECIDA. DIVISÃO IGUALITÁRIA DOS BENS DEIXADOS PELO CASAL, ENTRE TODOS OS HERDEIROS HABILITADOS. IMPOSSIBILIDADE. COMORIÊNCIA ESTABELECIDA, QUE INVIABILIZA O RECONHECIMENTO DE DIREITOS SUCESSÓRIOS ENTRE OS FALECIDOS. MATRIMÔNIO DO CASAL SOB O REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. IMÓVEL ADQUIRIDO ANTES DA UNIÃO. VALORES ATINENTES A SALDO DE FGTS, VERBAS RESCISÓRIAS E DE PREVIDÊNCIA PRIVADA, QUE POSSUEM CARÁTER PERSONALÍSSIMO. DECISÃO MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.
(TJSC, Agravo de Instrumento n. 4023575-15.2018.8.24.0900, de Jaraguá do Sul, rel. Bettina Maria Maresch de Moura, Segunda Câmara de Direito Civil, j. 21-05-2020).
Apesar da ausência de maiores detalhes, por se tratar de processo que tramita em segredo de justiça (possivelmente por envolver direitos de menores de idade), podemos depreender, pela leitura da ementa, que um casal veio a falecer simultaneamente em acidente, tendo a partilha de um imóvel, que era de propriedade apenas do marido, deixado de fora os pais da esposa.
Caso o marido tivesse falecido antes da esposa, pelo fato de o casamento ter sido regido pela comunhão parcial de bens, a esposa seria herdeira e, vindo a falecer horas depois, por exemplo, seus pais de fato seriam herdeiros do imóvel. Ou seja, mesmo não havendo inventário, o imóvel teria transitado por algumas horas no patrimônio da esposa, criando o direito dos seus pais à herança.
Esse, contudo, não foi o caso. A comoriência afastou completamente o direito dos pais da esposa ao seu quinhão referente ao imóvel que era de propriedade apenas do genro. Isso ocorre porque, como bem destacado na decisão, a comoriência “inviabiliza o reconhecimento de direitos sucessórios entre os falecidos”.
Trata-se, assim, de instituto jurídico de grande relevância em planejamentos sucessórios, principalmente porque o “regime legal” dos casamentos é justamente o da comunhão parcial de bens, o que pode proporcionar situações como a analisada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
Os doutrinadores Conrado Paulino da Rosa e Marco Antonio Rodrigues trazem outro exemplo em que a comoriência pode impactar diretamente herdeiros de pessoas que falecem simultaneamente:
“Imaginemos que João e Maria, casados pelo regime da separação convencional de bens, sem descendentes nem ascendentes, vem a falecer em um acidente de carro onde, no momento do impacto, ambos morrem. Cada um deles possui um irmão vivo e um patrimônio de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais). Existindo a comoriência, cada um dos irmãos receberá R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) (…)
Todavia, se João morreu no impacto e Maria faleceu posteriormente, no momento em que chegou no hospital, não há falar em comoriência, mas, sim, de sucessões em momentos diferentes, o que muda totalmente a divisão da herança, embora sejam as mesmas pessoas e o mesmo patrimônio.
Nesse caso, haja vista ter falecido antes de sua esposa, abre-se primeiramente a sucessão de João, esse que, sem descendentes ou ascendentes, terá Maria como sua única herdeira, uma vez que a ordem de chamada para a herança prevista no artigo 1.829 do código civil dispõe que a existência de cônjuge afasta os colaterais, afastando, portanto, o irmão de João do recebimento da herança. Desse modo, Maria herda a totalidade da herança, independentemente do regime de bens, passando a ter patrimônio de R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais).
Com o falecimento posterior de Maria, viúva de João, sem descendentes ou ascendentes, quem receberá a totalidade do patrimônio será o irmão de Maria, para o desespero do irmão de João.”
Fica evidente, portanto, que a possibilidade de comoriência não pode ser ignorada no momento da elaboração de planejamento patrimonial e sucessório, sob pena de os herdeiros de um dos envolvidos em um acidente, por exemplo, virem a ser prejudicados, como vimos nos dois exemplos citados acima.
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¹ ROSA, Conrado Paulino da; RODRIGUES, Marco Antonio. Inventário e Partilha. 2ª Ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.
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