O impacto de decisões do STF no planejamento sucessório
Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal tem proferido decisões com repercussão geral (ou seja, que devem ser aplicadas em todo o Brasil, seja em âmbito judicial ou administrativo, o que inclui tabelionatos de notas) envolvendo diferentes tipos de matérias que influenciam no direito das sucessões – e, consequentemente, nos planejamentos das transmissões do patrimônio para a próxima geração.
Neste post, recapitularemos algumas dessas decisões e faremos alguns comentários sobre cada uma delas.
União de pessoas do mesmo sexo
Há quase 10 anos, em 14/10/2011, o Supremo Tribunal Federal decidiu, ao julgar a ADI 4277, que relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo possuem as mesmas proteções legais que as uniões entre heterossexuais.
Confira trecho da ementa:
2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA.
(…)
4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE “ENTIDADE FAMILIAR” E “FAMÍLIA”.
A principal crítica à decisão, na época, foi a interpretação dada pelo STF ao art. 226, § 3º, da Constituição Federal, que expressamente fala que “é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher”, sendo que caberia, em tese, ao Congresso Nacional alterar o texto da Constituição por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC).
Como consequência dessa decisão, em 2013 o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 175/2013 determinando a obrigatoriedade de as autoridades competentes aceitarem a celebração de casamento civil entre pessoas do mesmo sexo:
CONSIDERANDO que o Supremo Tribunal Federal, nos acórdãos prolatados em julgamento da ADPF 132/RJ e da ADI 4277/DF, reconheceu a inconstitucionalidade de distinção de tratamento legal às uniões estáveis constituídas por pessoas de mesmo sexo;
(…)
RESOLVE:
Art. 1º É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo.
(…)
A partir de 2013, portanto, o casamento civil ficou completamente assegurado às pessoas do mesmo sexo, sem necessidade de autorização judicial.
Equiparação da união estável ao casamento
No ano de 2018, o Supremo Tribunal Federal equiparou, ao declarar a inconstitucionalidade do art. 1.790, do Código Civil, a união estável (seja ela registrada em cartório ou não) ao casamento para fins sucessórios.
Já falamos sobre o assunto neste vídeo.
Confira a ementa da famosa decisão proferida no Recurso Extraordinário nº 878.694:
DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. INCONSTITUCIONALIDADE DA DISTINÇÃO DE REGIME SUCESSÓRIO ENTRE CÔNJUGES E COMPANHEIROS.
1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável.
2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988.
3. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nºs 8.971/94 e 9.278/96 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção eficiente, e da vedação do retrocesso.
4. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública.
5. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”.
Apesar de bem intencionada por garantir direitos ao companheiro, essa decisão do Supremo Tribunal Federal gerou críticas de parte da doutrina especializada por alguns motivos:
- Muitas vezes os próprios conviventes/companheiros (pessoas que vivem em união estável) não queriam atribuir à sua relação o “peso” de um casamento, inclusive para fins sucessórios.
- Em algumas ocasiões, o(a) companheiro(a) poderia até mesmo ter mais direitos do que o(a) cônjuge sobrevivente (como no caso de o companheiro, antes da decisão do STF, vir a ter direito à herança e à meação, enquanto o cônjuge apenas à meação, no regime de comunhão universal de bens).
- O Supremo não deixou claro, em sua decisão, se a equiparação do companheiro à condição de cônjuge seria apenas para fins de herança, ou se para outros institutos também (como direito real de habitação, deserdação ou condição de herdeiro necessário).
Bigamia
No final de 2020, o Supremo Tribunal Federal, ao analisar um caso envolvendo pedido de pensão por morte de um “amante” (que alegava união estável simultânea ao casamento), acabou reafirmando o entendimento de que não pode haver bigamia no Brasil. Ou seja, é juridicamente válido ter apenas um casamento ou uma união estável.
Segue a ementa:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. TEMA 529. CONSTITUCIONAL. PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. RATEIO ENTRE COMPANHEIRA E COMPANHEIRO, DE UNIÕES ESTÁVEIS CONCOMITANTES. IMPOSSIBILIDADE.
1. A questão constitucional em jogo neste precedente com repercussão geral reconhecida é a possibilidade de reconhecimento, pelo Estado, da coexistência de duas uniões estáveis paralelas, e o consequente rateio da pensão por morte entre os companheiros sobreviventes – independentemente de serem relações hétero ou homoafetivas.
2. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL tem precedentes no sentido da impossibilidade de reconhecimento de união estável, em que um dos conviventes estivesse paralelamente envolvido em casamento ainda válido, sendo tal relação enquadrada no art. 1.727 do Código Civil, que se reporta à figura da relação concubinária ( as relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato ).
3. É vedado o reconhecimento de uma segunda união estável, independentemente de ser hétero ou homoafetiva, quando demonstrada a existência de uma primeira união estável, juridicamente reconhecida. Em que pesem os avanços na dinâmica e na forma do tratamento dispensado aos mais matizados núcleos familiares, movidos pelo afeto, pela compreensão das diferenças, respeito mútuo, busca da felicidade e liberdade individual de cada qual dos membros, entre outros predicados, que regem inclusive os que vivem sob a égide do casamento e da união estável, subsistem em nosso ordenamento jurídico constitucional os ideais monogâmicos, para o reconhecimento do casamento e da união estável, sendo, inclusive, previsto como deveres aos cônjuges, com substrato no regime monogâmico, a exigência de fidelidade recíproca durante o pacto nupcial (art. 1.566, I, do Código Civil).
4. A existência de uma declaração judicial de existência de união estável é, por si só, óbice ao reconhecimento de uma outra união paralelamente estabelecida por um dos companheiros durante o mesmo período, uma vez que o artigo 226, § 3º, da Constituição se esteia no princípio de exclusividade ou de monogamia, como requisito para o reconhecimento jurídico desse tipo de relação afetiva inserta no mosaico familiar atual, independentemente de se tratar de relacionamentos hétero ou homoafetivos.
5. Tese para fins de repercussão geral: “A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1723, § 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro”.
6. Recurso extraordinário a que se nega provimento.
A decisão, embora não seja uma novidade, pois apenas reafirmou entendimento já existente sobre o assunto, acabou gerando críticas de doutrinadores que defendem a necessidade de o Estado proteger todas as relações amorosas, e não apenas uma delas.
Inconstitucionalidade de cobrança do ITCMD sobre ativos no exterior
Para finalizar este primeiro post sobre decisões do STF que geraram impacto no planejamento sucessório, finalizamos com julgamento realizado no início de 2021, onde o Supremo Tribunal Federal decidiu ser inconstitucional a cobrança, pelos Estados, do ITCMD quando os bens estão localizados no exterior.
Este assunto já foi abordado aqui no Próxima Geração neste post.
Confira trecho do voto do Ministro Relator, Dias Toffoli:
“É que, repare-se bem, não se está aqui perante a lei complementar no seu papel constitucional de veiculadora de ‘normas gerais’, atribuído pelo inciso III do art. 146, mas sim na sua imprescindível função de ‘norma sobre competência’, conferido pelo inciso I do mesmo artigo, reguladora, por via preventiva, de conflitos de competência, em matéria tributária, entre os entes políticos da União.
Se é admissível o exercício supletivo pelos Estados, de uma competência concorrente em matéria de ‘normas gerais’, já não o é em matéria de ‘ conflitos de competência’ em que a competência normativa não é concorrente, mas privativa da União, na forma de lei complementar, pois só esta, de âmbito de validade geral, é suscetível de prevenir a formação de concursos de pretensões dos diversos Estados e do Distrito Federal potencialmente envolvidos na situação.
Com efeito, nas hipóteses em questão, a Constituição faz depender a própria existência da competência impositiva dos Estados e do Distrito Federal da edição de uma lei complementar prévia reguladora dos limites para seu exercício pela definição precisa de quais as conexões atributivas da competência de cada um dos entes políticos potencialmente envolvidos numa situação. E isto decerto para evitar os gravíssimos conflitos de competência que certamente adviriam se cada um dos Estados fosse livre para estabelecer os elementos de conexão que bem entendesse, gerando uma pluralidade de incidências sobre o mesmo fato gerador.
A escolha de qual Estado é titular de competência tributária é, pois, uma questão prévia relativa à aplicação da lei material reguladora da tributação, de tal maneira que a ausência da primeira envolve necessariamente a ineficácia da segunda, impedindo a vigência da mesma até à sua publicação.”
Até que seja editada a Lei Complementar (inclusive já existe projeto de Lei tramitando no Congresso sobre o tema), os Estados estão impedidos de cobrar ITCMD em relação à transmissão de bens localizados no exterior.
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