Herança Digital

Em um mundo que migra cada vez mais para o universo virtual, não causa espanto o surgimento de discussões envolvendo o que vem sendo denominado de “herança digital”.

As discussões giram em torno da transmissão dos direitos relacionados à “vida virtual” do falecido: suas redes sociais, livros digitais adquiridos, assinaturas de serviços digitais diversos e, até mesmo, lojas virtuais que podem garantir o sustento da família, contas digitais, criptomoedas, etc.

Discute-se também a destinação a ser dada ao conteúdo existencial que integra essa “vida digital”, como fotos, vídeos, posts, interações em outros posts, etc., e ao conteúdo patrimonial, ou seja, que pode (e deve) fazer parte da herança, bem como a definição (e destinação) do que pode estar transitando entre um e outro. Falaremos mais disso ao longo do post.

Na ausência de legislação específica, no Brasil têm prevalecido, em geral, os termos de uso das próprias plataformas. Em decisão recente, o Tribunal de Justiça de São Paulo rejeitou o pedido de familiares para que o Facebook reativasse a conta de uma parente falecida, justamente em função da escolha da usuária no momento de criação da conta:

AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER E INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA – EXCLUSÃO DE PERFIL DA FILHA DA AUTORA DE REDE SOCIAL (FACEBOOK) APÓS SUA MORTE – QUESTÃO DISCIPLINADA PELOS TERMOS DE USO DA PLATAFORMA, AOS QUAIS A USUÁRIA ADERIU EM VIDA – TERMOS DE SERVIÇO QUE NÃO PADECEM DE QUALQUER ILEGALIDADE OU ABUSIVIDADE NOS PONTOS ANALISADOS – POSSIBILIDADE DO USUÁRIO OPTAR PELO APAGAMENTO DOS DADOS OU POR TRANSFORMARO PERFIL EM “MEMORIAL”, TRANSMITINDO OU NÃO A SUA GESTÃO A TERCEIROS -INVIABILIDADE,  CONTUDO, DE MANUTENÇÃO DO ACESSO REGULAR PELOS FAMILIARES ATRAVÉS DE USUÁRIO E SENHA DA TITULAR FALECIDA,POIS A HIPÓTESE É VEDADA PELA PLATAFORMA – DIREITO PERSONALÍSSIMO DO USUÁRIO, NÃO SE TRANSMITINDO POR HERANÇA NO CASO DOS AUTOS, EIS QUE AUSENTE QUALQUER CONTEÚDO PATRIMONIAL DELE ORIUNDO – AUSÊNCIA DE ILICITUDE NA CONDUTA DA APELADA A ENSEJAR RESPONSABILIZAÇÃO OU DANO MORAL INDENIZÁVEL – MANUTENÇÃO DA SENTENÇA RECURSO NÃO PROVIDO.

(TJSP. Processo nº 1119688-66.2019.8.26.0100. 31ª Câmara de Direito Privado. Relator Francisco Casconi. Publicado em 12/03/2021)

Parece-nos correta a decisão, eis que a mãe pretendia continuar acessando o perfil da filha normalmente, após seu falecimento, o que nos parece inadequado. Também há o entendimento de que tal pretensão acabaria violando os direitos da personalidade (intimidade, vida privada, etc.) da dona do perfil, que devem ser preservados mesmo após a sua morte, bem como das pessoas com as quais ela mantinha contato em conversas pessoais (sendo que a maioria certamente ainda vive), o que poderia gerar situações embaraçosas.

Situação difícil de analisar, contudo, e que transita, como dito, entre o conteúdo existencial e patrimonial do autor da herança, é quando o próprio perfil pessoal do falecido era utilizado para garantir o sustento da família, como é o caso, por exemplo, dos conhecidos “influenciadores digitais” e “youtubers” que comumente transformam suas vidas pessoais (incluindo sua própria rotina, em muitos casos) em verdadeiras empresas.

Por mais que, em geral, seja a própria imagem do influenciador que garanta a renda, seja com patrocínios ou comissionamento de produtos e serviços, físicos ou digitais, vendidos, nada impede, a princípio, que a família dê continuidade ao perfil e continue conseguindo “monetizá-lo” por meio da base de seguidores, sendo mérito dos herdeiros conseguir manter a rentabilidade post mortem da conta da rede social do falecido.

Note-se que a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo faz a ressalva de que, no caso analisado, está “ausente qualquer conteúdo patrimonial dele oriundo”, ou seja, não se discutia, naquele caso, eventual rentabilização do perfil do Facebook da filha da autora da ação.

Discussões semelhante vêm sendo travadas mundo afora, tendo ganhado notoriedade decisão judicial proferida na Alemanha, onde, em caso parecido com o julgado pela justiça paulista, o Poder Judiciário determinou que o Facebook entregasse aos pais de uma jovem todo o conteúdo de seu perfil para que eles pudessem entender as razões que a levaram a supostamente cometer suicídio.

Para os que quiserem se aprofundar nesse caso, recomendo a leitura deste artigo, em que o autor ressalta, inclusive, a contradição na postura das empresas de redes sociais, que, apesar de dificultarem o acesso aos perfis sob alegação de privacidade e sigilo dos dados, utilizam os mesmos dados para vender anúncios com base nos interesses de seus usuários.

Apesar da ausência de lei específica no Brasil, como já destacado, entendemos ser válida a previsão em testamento, por exemplo, para que os filhos possam ter acesso às contas dos perfis em redes sociais, ou até mesmo de lojas virtuais (como é comum no Mercado Livre, por exemplo) do autor da herança.

Sobre o tema, cabe destacar as considerações de Conrado Paulino da Rosa e Marco Antonio Rodrigues[1]:

“Assim, em relação a páginas e contas protegidas por senha, deve-se verificar o caráter do conteúdo ali contido e a funcionalidade da aplicação. Tratando-se de aplicações com fundo estritamente patrimonial, como contas de instituições financeiras, ou ligadas a criptomoedas, por exemplo, a conta e a senha poderiam, com tranquilidade, ser transferidas para os herdeiros.

Todavia, o potencial econômico das redes sociais, não apenas na plataforma Youtube, mas também o Instagram, onde o número de seguidores se transforma em uma lucrativa ferramenta nos impulsiona a uma urgente reflexão. Nos últimos anos tem crescido o fenômeno de, frente ao falecimento de uma personalidade, em poucas horas, seu número de seguidores cresce exponencialmente. Como exemplo, em novembro de 2019, aconteceu com o perfil de Gugu Liberato em que, depois do anúncio de seu óbito, passou a ter um milhão a mais de seguidores.

Segundo os termos de uso do aplicativo, após a morte do titular da conta do Instagram, a pedido dos interessados, a conta pode ser transformada em um memorial. Entretanto, depois disso, ninguém poderá alterar as publicações ou informações nela existentes.

Certamente, a continuidade de uma espécie de “personalidade virtual” do falecido, seja por meio das plataformas que ele utilizava em vida ou por aquelas que substituírem, deve ser enquadrada como um bem passível de transmissão onde, salvo disposição em contrário, será recebida pelos herdeiros legalmente atribuídos.

A melhor opção, portanto, é o titular, ainda em vida, com esteio em sua autonomia privada, dispor acerca da destinação de seu patrimônio digital, deixando claro se permitirá a alguém ter acesso às suas informações personalíssimas, ou não.”

O presente post, até mesmo pela densidade do assunto, não tem por objetivo exaurir o tema, e sim apenas introduzi-lo aos leitores do Próxima Geração, para que possam acompanhar a evolução da complexa discussão que cerca a herança digital, que está apenas iniciando.

Conforme forem surgindo novas diretrizes em relação ao tema, elaboraremos novos posts sobre a matéria ou, no mínimo, comentaremos sobre o assunto em nossa Newsletter quinzenal.

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[1] ROSA, Conrado Paulino da; RODRIGUES, Marco Antonio. Inventário e Partilha. 2ª Ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.

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Sobre o Autor

Felipe Zaleski
Felipe Zaleski

Sócio da Raupp Advocacia Empresarial, advoga desde 2013 para pessoas físicas e jurídicas. Especializado em direito tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBET) de Santa Catarina, o autor alia o conhecimento teórico e prático adquirido ao longo dos anos nas diversas áreas do Direito necessárias à realização de um bom planejamento patrimonial, como societário, contratual, imobiliário, família e sucessões.

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