Os limites do bem de família legal

Há algum tempo escrevemos, aqui no Próxima Geração, sobre o bem de família voluntário, instrumento pouquíssimo conhecido e, justamente por isso, raramente utilizado pelas famílias brasileiras, mas que pode ser bastante útil quando o assunto é proteção patrimonial.

Naquele post, falamos brevemente sobre a proteção conferida ao bem de família pela lei, assunto sobre o qual nos aprofundaremos agora.

A impenhorabilidade do bem de família está prevista na Lei n. 8.009/90, mais especificamente em seu art. 1º, que assim prevê:

Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.

Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.

As exceções previstas na lei estão elencadas nos arts. 3º e 4º:

Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:

II – pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;

III – pelo credor da pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida;

IV – para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;

V – para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;

VI – por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.

VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.

Art. 4º Não se beneficiará do disposto nesta lei aquele que, sabendo-se insolvente, adquire de má-fé imóvel mais valioso para transferir a residência familiar, desfazendo-se ou não da moradia antiga.

§ 1º Neste caso, poderá o juiz, na respectiva ação do credor, transferir a impenhorabilidade para a moradia familiar anterior, ou anular-lhe a venda, liberando a mais valiosa para execução ou concurso, conforme a hipótese.

§ 2º Quando a residência familiar constituir-se em imóvel rural, a impenhorabilidade restringir-se-á à sede de moradia, com os respectivos bens móveis, e, nos casos do art. 5º, inciso XXVI, da Constituição, à área limitada como pequena propriedade rural.

 Apesar dessas exceções, que são autoexplicativas (o texto da lei é de fácil compreensão), ao longo dos anos a jurisprudência, em especial do Superior Tribunal de Justiça, vem ampliando ou restringindo o direito à impenhorabilidade do bem de família, dependendo do caso analisado.

Por exemplo, apesar da exigência legal de a família residir no imóvel para a caracterização do bem de família, o STJ já sumulou o entendimento de que a locação do imóvel a terceiros não impede o direito à fruição do bem de família, com a condição de que o valor da locação seja utilizado para a subsistência da família:

Súmula 486: É impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família.

Já a vaga de garagem que possui matrícula individualizada não goza da proteção legal, conforme também já sumulou o STJ:

Súmula 449: A vaga de garagem que possui matrícula própria no registro de imóveis não constitui bem de família para efeito de penhora.

Um dos entendimentos do STJ mais polêmicos, talvez, sobre o instituto do bem de família, é a irrelevância do valor do imóvel para fins de caracterização da impenhorabilidade, como exemplifica a ementa a seguir copiada:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. BEM DE FAMÍLIA. ALTO VALOR DO IMÓVEL. IMPENHORABILIDADE MANTIDA. SÚMULA 568/STJ. DISSÍDIO PREJUDICADO.

1. Ação de execução de título extrajudicial.

2. Os imóveis residenciais de alto padrão ou de luxo não estão excluídos, em razão do seu valor econômico, da proteção conferida aos bens de família consoante os ditames da Lei nº 8.009/90. Súmula 568/STJ.

3. Diante da análise do mérito em que foi desacolhida a pretensão do agravante, fica prejudicada a divergência jurisprudencial.

4. Agravo interno desprovido.

(AgInt no AREsp n. 2.107.604/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 17/10/2022, DJe de 19/10/2022.)

Ou seja, para o Superior Tribunal de Justiça, como a lei não fala em valores, fica assegurada a proteção inerente aos bens de família também para os imóveis de luxo, que possuem valor de mercado até mesmo maior do que a dívida que está sendo cobrada pelo credor.

Por outro lado, o STJ também entende que é possível o desmembramento de um imóvel para que se chegue a um equilíbrio, protegendo-se a residência da família e, ao mesmo tempo, o direito do credor de ver o débito total ou parcialmente satisfeito. Nesse sentido, transcrevemos a seguinte ementa de uma decisão recente do Tribunal:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. BEM DE FAMÍLIA DIVISÍVEL. MORADIA CONSTRUÍDA EM QUATRO TERRENOS, CADA QUAL COM SUA MATRÍCULA NO CRI. BENS UTILIZADOS COMO MORADIA E COMO COMÉRCIO. CONSTRUÇÕES EDIFICADAS COM AMBAS AS FINALIDADES. DESMEMBRAMENTO DE APENAS UM DOS QUARTOS DA RESIDÊNCIA. INEXISTÊNCIA DE DESCARACTERIZAÇÃO DO IMÓVEL COMO ABRIGO DA FAMÍLIA. CONCLUSÕES PROBATÓRIAS DAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE NA VIA ELEITA. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.

1. Esta Corte tem entendimento iterativo de que é viável a penhora de parte de imóvel residencial quando o seu desmembramento não prejudique ou inviabilize a moradia da família.

2. Na espécie de que se cuida, são quatros imóveis, todos contíguos, cada qual com sua matrícula no CRI, sendo que a residência foi edificada nos fundos e sobre as construções, estas (duas) com destinação diferente da residencial (local de culto religioso e oficina mecânica).

3. No caso concreto, em última ratio, portanto, a penhora recairá sobre imóvel comercial (oficina mecânica), pois, com a simples reversão de um dos dormitórios da residência para a sua destinação original (mezanino da oficina), não estará descaracterizada a moradia da família.

4. Conclusões das instâncias ordinárias que não podem ser revertidas na via do recurso especial, ante o veto da Súmula 7/STJ.

5. Agravo interno desprovido.

(AgInt no AREsp n. 1.593.892/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 26/6/2023, DJe de 28/6/2023.)

Em um país que possui tantos problemas de insegurança jurídica, principalmente para sócios de pessoas jurídicas, que facilmente vêem o seu patrimônio pessoal ser atingido por dívidas da empresa, ter um imóvel registrado em seu nome e utilizá-lo para a moradia da sua família pode fazer parte, juntamente com outras ferramentas (como a escolha do regime da separação de bens), de um bom planejamento patrimonial.

E você, acha que o STJ tem acertado nas decisões envolvendo bem de família? Deixe seu comentário!


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Sobre o Autor

Felipe Zaleski
Felipe Zaleski

Sócio da Raupp Advocacia Empresarial, advoga desde 2013 para pessoas físicas e jurídicas. Especializado em direito tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBET) de Santa Catarina, o autor alia o conhecimento teórico e prático adquirido ao longo dos anos nas diversas áreas do Direito necessárias à realização de um bom planejamento patrimonial, como societário, contratual, imobiliário, família e sucessões.

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